O Nosso Milagre Prateado
translated by Paulo Abreu and Britta Szymczak
Photo Title
- Filhos de Pescadores
Localização
- Barreiro
Ano
- 1947
Nos dias da maior apanha, não te acanhes, não esperes pela mudança da maré, não te podes esconder atrás do mais alto.
Isto foi o que o nosso pai e avô sempre nos disseram. Mas não se deviam estar a referir ao que aconteceu nesse domingo, em que a nossa baía se encheu de um esturjão que ninguém esperava, sendo o dia previsto para o batismo do nosso mais novo, todos nós com a barrela feita e prontos para sair, exceto que a nossa mãe gritou para o quarto das crianças, toda agitada no seu vestido de alças que usava para a barrela, despachem-se, mudança de planos, primeiro temos que ir ao largo da terra, vão anunciar algo novo sobre a nossa casa e a autoestrada.
No domingo antes da missa? perguntámos, mas ela saiu do quarto tão depressa que mal notámos o seu revirar de olhos. O batismo estava atrasado alguns meses, e não éramos normalmente dos que iam à igreja grande no cimo do monte, visto que algumas vezes por ano íamos à do fundo da colina, velha e degradada, com as escadas gastas e os montes de espinhas de peixe empilhados pelos becos à volta e onde um das centenas de gatos do porto me estava especialmente afilado, fitando-me com os seus olhos alaranjados a menos que tivesse conseguido roubar um pouco do queijo da mesa da mãe nas traseiras, feita de restos de madeira da praia, tapado com um pano do dote da sua bisavó, aquela que nos tinha posto neste cabo de trabalhos, porque nós devíamos também estar numa casa toda bonitinha no cimo do monte, mas quando começaram a construir a autoestrada entre as duas cidades há tantos anos atrás, atravessaram-nos uma enorme faixa pela nossa quinta adentro e pelos nossos pastos abaixo, e assim dos nossos bisavós ao nosso pai, todos pessoas que falavam demais, todos acabaram enterrados debaixo do teixo nas traseiras e a nossa mãe cada vez mais agitada.
O que fez com que as idas à nossa igreja lá de baixo fossem cada vez menos frequentes, e toda a gente começou a chamar-me ainda mais maria-rapaz, sempre a refilar se me enfiavam num avental, mas odiava quando me enfeitavam demais, feliz por fazer saltar os seixos na água melhor que o mais velho, sempre adorando andar pelo porto a ver o peixe, o porto que fazia o que podia para me proteger das boas companhias já que eu era uma desbocada, como a nossa avó costumava dizer.
E assim nesse domingo, só porque a mãe nos pediu, lá fomos todos arranjadinhos ao largo da aldeia mas os miúdos da escola do cimo da colina começaram a gozar connosco, até a apertar o nariz, dizendo filhos de pescador, filhos de pescador, e a nossa mãe atrasada trazendo o mais novo, tínhamos que fugir e esconder-nos no nosso porto, onde o que nos esperava era um puro milagre, uma visão da maior rareza, as costas prateadas de centenas de esturjões, e de que estavam eles a esconder-se, porque tinham vindo como uma aparição à nossa baía que normalmente só convidava uns peixinhos ou umas sardinhas e se tivesses sorte algo estranho e antigo que te fitava com olhos salientes e que parecia saber toda a triste história da tua família?
Como se finalmente tudo de bom no mundo chegasse à nossa família. Mesmo se foi exatamente nesse dia que não tínhamos trazido varas, mas pelo menos o esturjão fazia parecer que tudo tinha mudado a nosso favor e, quando olho para trás, é fácil de ver como esse dia foi o início de tudo, mesmo que o fotógrafo da terra nos tivesse perseguido, chamando-nos ladrões e patifes, mas nós não ouvimos, a partir daí jurei que nunca seria quem se fica e espera pela mudança da maré.
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