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Sobre Ser a Musa de um Fotógrafo

Sinto-me desconfortável se alguém olha para mim. Um par de olhos aponta na minha direção e quero fugir. Não sou uma misantropa — sou atraída para as pessoas, mas também me deixam nervosa. Adaptei-me aprendendo a olhar para o lado ou a fechar os olhos quando falo e, se isso não ajudar, tenho outro truque para emergências, um que ativo tão depressa como o airbag de um automóvel.

Photographer's Muse

Quando atinjo o meu limite de proximidade com outro ser humano, a minha mente preenche o espaço entre nós com uma espuma protetora invisível. Por vezes esta barreira esponjosa está salpicada com distrações divertidas — letras de músicas favoritas, ou ideias para bolos a cozinhar, histórias a escrever —, enquanto que noutras alturas é simplesmente tão utilitária como esferovite. O termo psicológico para esta estratégia é dissociação. Amigos dizem-me que pode ser estranho observarem-na em ação, os meus olhos ficando distantes e nublados enquanto me embrulho confortavelmente na minha bolha de espuma, como se me preparasse para decolar. Mas funciona.

Quando me apanho à frente de uma câmara sinto uma idêntica vontade de fugir. Fico encurralada, presa, a câmara é uma ameaça. Nem sempre foi assim. O meu pai gostava de fazer fotos de mim e das minhas irmãs e, nesses primeiros instantâneos, estou à vontade — a fazer patetices, a rir-me com o nariz torcido, a devorar um copo de gelado. Feliz por estar com ele, sem notar a câmara ou, se noto, sem ela me perturbar. Mais tarde, fotos tiradas por outros mostram uma petiza desajeitada e assustadiça, prova visual que não possuía o código secreto para o mundo social.

O meu marido Russell é fotógrafo e, apesar da minha resistência, ele conseguiu que me deixasse enganar e me tornasse um dos seus temas. As suas primeiras fotos são previsivelmente das minhas costas, da minha mão ameaçadora ou da minha cara numa careta de censura mas, com o passar do tempo, comecei a habituar-me aos seus instantâneos. Em parte é a sua discrição britânica que me desarma e a sua conversa suave de pequenos nadas diários que ele, sem esforço, distribui, todos os querida e linda e amorosa com que me nutre. E há algo mais que compartilhamos, um traço que nos une.

Como eu, também o Russell sofre de uma sobrecarga social. A fotografia oferece-lhe uma certa distância, um contacto atrás da lente como da sua própria bolha de segurança. A câmara do Russell é o seu amuleto, o seu feitiço da sorte, tão essencial como um órgão ou um membro. Consigo esquecer-me que está lá, como me esquecia em miúda ao fazer patetices em frente ao meu pai. Ou talvez seja de mim que me esqueço, ao ler um livro, cozer um bolo, beber uma cerveja, contar uma história, passear pelas ruelas nas horas silenciosas da noite, a minha vida vivida frente à câmara enquanto o Russell se esquece de si por trás dela, tirando fotos.

 

Muse for photographers

 

Estar com o Russell — com ou sem câmara — é como estar sozinha, mas melhor. Acredito que é por isto que formamos relações humanas: para, na companhia do outro, deliciosamente nos esquecermos de nós, compartilhando um certo estado de fuga amnésica que nos protege das nossas feridas secretas.

Desde o momento em que as câmaras se tornaram acessíveis a todos que passaram a ser usadas para registar as suas relações. Como colecionadora de instantâneos de pessoas mortas, sinto-me como uma espia, quase como uma voyeur — entrando às escondidas no passado de estranhos, farejando pistas. Histórias ocultas atraem-me, tanto na vida como na arte, e descobri-las ilumina-me. As fotos que encontro educaram-me na história e na natureza humana tanto como qualquer livro que tenha lido. De alguma forma, estas minhas amizades de papel são-me tão íntimas como as pessoas de carne e osso que me estão mais próximas e é bom se me sinto assoberbada por elas.

Por vezes encontro uma série de instantâneos que, por se focarem apenas num só indivíduo, se tornaram num retrato da ligação entre o fotógrafo e o fotografado. Provas desta relação podem ser encontradas em como o corpo se orienta no ambiente, na cumplicidade com a luz, em como aspetos da personalidade são representados. Sinto a presença do invisível fabricante de imagens, não apenas como amigo, amante, cônjuge ou pai do ou da figurante, mas também como artista, com o ou a figurante como musa.

 

Photographer's model

 

A palavra musa vem do grego, Moûsa, e refere-se às nove deusas mitológicas da inspiração. Segundo o poeta Hesíodo, as musas não só inspiraram as artes, mas também “trouxeram o esquecimento à humanidade, isto é, o esquecimento da dor e o fim das obrigações”. A forma verbal inglesa “to muse” emergiu do francês do século XIV, e significa “refletir, meditar, sonhar, ou devanear”, uma evolução da inspiração da deusa invocada para um poder inato e auto-gerado.

Durante o último século certas mulheres foram escolhidas por homens para assumirem o papel de musa, com a única função de inspirarem o génio artístico. Embora algumas destas uniões tenham produzido obras de arte célebres, muitas foram um grande peso para a mulher envolvida: esmagadas sob um poder desigual, sacrifícios pessoais enormes e consequências emocionais trágicas (por vezes fatais). Claro que há exceções e eu tiro algum conforto das histórias de musas que disseram não, que ficaram firmes na sua posição ou que se levantaram e partiram, que escolheram o seu trabalho em vez do de outra pessoa. E estou sempre muito interessada sobre colaboradores que conseguiram inspirar-se mutuamente sem destruírem a sua relação.

 

 

John Lennon disse: “A minha vida é a minha arte”, um ethos que adaptei para significar: O segredo para uma vida artística é deixar a minha curiosidade espraiar-se livremente e segui-la para onde for. Se a musa é a minha deusa, então a curiosidade é o seu irmão traquinas, um companheiro malandro que me desafia a entrar pela janela aberta, a levantar a pedra, a fazer a pergunta pateta. A sua irmã mais velha faz o trabalho pesado, pegando no que ele encontra e atirando contra a parede, para ver o que cola.

A minha musa pode ser instável e autoritária. Força-me a por tudo em questão — a descartar as minhas espectativas endurecidas e os meus ressentimentos enferrujados, a minha cegueira pelo poder e desejos mesquinhos — e a mudar ou destruir o que não funciona (mas por favor com uma mão cuidadosa, ó meu querido Eu!).

Uma forma que encontrei de convidar a musa sem fazer explodir a minha vida em pedaços é inclui-la numa colaboração entre mim e outra pessoa, criando uma espécie de triângulo criativo. (Não tem a ver necessariamente sobre sexo, embora um Eros travesso possa estar à espreita mesmo ao lado.)

Os ingredientes principais para uma aliança deste tipo são respeito pela diferença, abertura a todas as possibilidades e uma procura do que é divertido. O velho e esgotado tropo da musa-artista não nos serve aqui. Em vez disso, a musa participa nas nossas conversas, nas nossas cumplicidades e colisões. Com um pouco de sorte, a musa dá à luz uma terceira entidade, uma monstruosa criança com as suas motivações muito próprias. Como um bebé descontrolado, esta musa incipiente pode saquear os nossos planos definidos pelo ego e destruir a nossa estrada familiar, exigindo que o condutor seja a confiança e a imaginação, e assim vermos para onde o diabo nos leva.

Num espirito brincalhão, a musa bebé pode levar-nos a trocar de lugar. Dá-me me a tua câmara, deixa-me fazer fotos de ti. Trocar as coisas é só umas das maneiras de saquear a mais sortuda e criativa pilhagem. Com um pouco de sorte, a nossa brincadeira afeta a página, a tela, a melodia, a fotografia ou, melhor ainda, a nossa própria ligação. De volta ao parque infantil!

Não fiquem com a ideia que estou mais atrevida à frente da câmara do Russell, flutuando e voando como uma Isadora Duncan. Nunca vai acontecer. Vou seguindo o meu dia e deixo-o em paz. Mas a arte de ser vista através da sua lente adicionou um novo sabor à minha vida. Sinto-me apanhada, mas da melhor das maneiras. Há alguém que me considera – eu, com todos os meus níveis de trabalho em progresso, em todos os tipos de iluminação, em todos os meus diferentes estados físicos e de espírito, — uma fonte de inspiração, assim, como sou. Esta vastidão onde posso ser eu própria sem ter que lutar para isso (tão cansativo!) dá-me mais energia e, por outro lado, alimenta e fortalece a nossa relação. (Nunca contei isto ao Russell — ele não faz ideia do que estou a falar. Mas acredito que é verdade.)

Cada um dos três grupos de fotos que vou compartilhar durante as próximas semanas ilustra uma relação. Todos foram encontrados em Portugal — duas coleções arrumadas em álbuns, a outra apenas um punhado de instantâneos numa caixa de cartão — e todos têm uma centena de anos. À primeira vista pode parecer que o fotógrafo exerceu um certo poder sobre a pessoa fotografada, movendo-a a seu bel-prazer, fazendo-a posar, capturando-a como um inseto no âmbar, como uma borboleta alfinetada num álbum.

 

 

Mas imbuído nestas imagens está o compromisso entre duas pessoas de passarem tempo fazendo algo juntas. A fotografada está descontraída e brincalhona, sem notar a câmara. O resultado é este conjunto de fotografias que brilham com simpatia. Quando olho para as faces que olham para mim, como olharam para o fotógrafo há cem anos atrás, sinto algo — como se o amor deixasse um traço que irradia do papel.

xxx

Esse post tem 6 comentários

  1. Thanks C, your words mean a lot coming from one as gifted as you. Looking forward to taking lessons on how to employ artistic propaganda over one’s grand-babies!

  2. Thank´s for an well written text on an interesting subject. My muse is my girlfriend, people and nature. I have an holistic view on muse. A little bit like John Lennon. O – and Paper Gost is very inspiering. (Hope you understand my english).

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