skip to Main Content

Sixpence

tradução em inglês por Jethro Soutar

Boy with Baby

Photo Title

  • Menino com Bebê

Localização

  • Luanda, Angola

Ano

  • 1950’s

Sacudido pelos solavancos do machimbombo, o rapazinho cabeceava de sono, apertado contra a janela. A desconhecida que viajava ao seu lado era uma camponesa corpulenta, com um bebé ao colo, ocupando dois terços do banco. O rapaz nunca tinha andado tanto tempo de carro e sentia-se enjoado com os balanços e com a atmosfera abafada. Lá fora, em sentido oposto corriam árvores, mato e, de longe em longe, povoações. Então o machimbombo fazia alto por alguns minutos apara receber ainda mais passageiros, com as suas trouxas e cestos de fruta, de hortaliças e galinhas, a caminho dos bazares da cidade.

Era a primeira vez que o puto se afastava da família, e estava inquieto quanto à vida que o esperava na grande cidade. Ao mesmo tempo sentia que se abriam à sua frente horizontes mais largos que os da aldeia. Tinha saudades da mãe e dos irmãos, mas deixava sem mágoa os bois que guardava desde miúdo, as bebedeiras do pai e sobretudo a fome.

Um dia o pai chamou-o e disse-lhe: 'O senhor Saraiva, da cantina, diz que um amigo dele precisa de um mufana para trabalhar lá em casa, em Xilongoíne. Vais aprender serviço, dão-te comida, roupa, sítio para dormir, e uma barra de sabão por mês. Ao fim de um ano começas a ganhar dinheiro. Prepara as tuas coisas. Apanhas o machimbombo dos Oliveiras amanhã bem cedo.'

Na altura a cidade ainda se chamava Lourenço Marques e era muito mais pequena e ordenada do que é hoje Maputo, mas o rapazito entrou em pânico no momento em que se apeou do machimbombo se fundiu na multidão. Nunca na vida tinha visto tantos brancos, nem tantos carros. Munido de um bilhete onde o senhor Saraiva rabiscara o endereço, foi abordando vários passantes, perguntando o caminho. Sempre negros, sempre em changana, porque não se atrevia a abordar os brancos no seu português rudimentar.

Levou horas a chegar ao destino, na Rua Heróis de Marracuene, que agora é Rua da Resistência. Porque era longe e porque a cada esquina se quedava, embasbacado com aquilo que via. Quase foi atropelado ao atravessar uma rua de nariz no ar, contando os andares de um prédio. O branco que ia ao volante pôs a cabeça de fora e gritou-lhe «Sai da frente, mamparra!» e toda a gente em volta se riu dele, brancos e negros.

O amigo do senhor Saraiva, chamado senhor Martins, vivia numa praceta na Malhangalene, e o agregado era composto pelo senhor Martins e dona Cacilda, uma filha, um genro e uma neta, a Belinha, ainda bebé. Isto quanto a brancos, porque também agregava dois criados. Um velho chamado Josué era cozinheiro-mainato, e um rapaz de Inhambane, o Paulino, era moleque-jardineiro. Ele é que apareceu à porta das traseiras e foi chamar a Senhora, enquanto o cozinheiro observava de soslaio o rapaz, perfilado lá fora, ao sol, com o seu saquito de plástico na mão.

Lá apareceu Dona Cacilda, balofa e pálida, enrolada num velho roupão e arrastando os chinelos pelo chão da cozinha. Olhou o miúdo de alto a baixo e perguntou 'Falas português? Aqui, o teu trabalho é tomar conta da menina enquanto a mãe dela vai trabalhar, brincar com ela, dar papa… E ajudas o Josué e o Paulino quando for preciso.'

A Senhora, enfadada, voltou-se para o moleque.

'Paulino, explica tudo, mostra onde ele vai dormir. Amanhã vou-lhe dar camisa e calções, antes tem de tomar banho. Mostra-lhe o chuveiro. Vai lá, leva o…'

Fez uma pausa, levou a mão à testa e perguntou ao miúdo.

'Como te chamas?'

'Sou Agostinho, Senhora – balbuciou o rapazito.'

'Agostinho? Não. Cá em casa és Sixpence.'

'Sixpence?' repetiu o pequeno, hesitante.

'Vocês têm nomes muito esquisitos – Zefanias, Fabião, eu sei lá… Se cada vez que mudo de criados tenho de fixar outros nomes, dou em maluca. Ficas Sixpence. Cá em casa, todos os mufanas se chamam Sixpence.'

Regressou ao Pauline.

'Vá, vão-se embora. Sinto que vem aí a enxaqueca e tenho de descansar. '

Atrás do Paulino, o ex-Agostinho, agora Sixpence, atravessou o quintal sombreado por uma grande mangueira, em direcção às dependências, encostadas ao muro do fundo.

'Afinal quem é essa dona Encaxeca que vem aí?' perguntou o miúdo, em changana.

O Paulino soltou uma gargalhada.

'Não é dona Encaxeca, burro. É só enxaqueca. É uma das doenças da Senhora, ela tem muitas.'

'E porque é que ela precisa de descansar antes de ficar doente?'

'É antes e durante. Aquilo dá dores de cabeça muito fortes e ela vai-se deitar às escuras. E ai de ti se fazes barulho!'

As dependências consistiam num quartinho e nos sanitários, anexos a um alpendre com o tanque de lavar roupa. O quarto era sombrio, com as paredes amarelecidas e a rede do postigo rasgada. É aqui que vou viver, pensou o miúdo, e apeteceu-lhe chorar.

'Sixpence, pousa ali as tuas cosas e… ' disse o Paulino, mas não teve resposta e repetiu. 'Sixpence!'

'Desculpa. Ainda não me habituei a ser Sixpence.'

'É normal. No princípio aconteceu-me o mesmo, mas fui-me acostumando a ser Paulino.'

'Afinal também não és Paulino mesmo?' espantou-se o miúdo.

'Não. Eu sou Ezequiel de baptismo, mas fiquei Paulino há dois anos, quando vim trabalhar aqui.'

O Sixpence estava pasmado.

'E o velho cozinheiro?'

'Esse foi sempre Josué. Já era quando começou a trabalhar aqui e continua a ser, porque foi o primeiro cozinheiro que eles tiveram quando chegaram de Portugal. Os cozinheiros que vierem a seguir é que serão sempre Josué. Percebes?'

O Sixpence não percebia, mas ficou calado.

'Agora vou tomar banho, porque tenho de ir servir o jantar,' disse o Paulino.

O Sixpence ficou ali sentado, ouvindo a água a correr do chuveiro e o colega a cantar uma canção do Xidiminguana que reconheceu. O Paulino voltou ao quarto, desatou a capulana e começou a preparar-se para servir à mesa, todo de branco, camisa, calças e sapatilhas.

'Agora vai tu tomar banho,' disse ao novato.

O Sixpence entrou a medo no cubículo dos lavabos, um metro quadrado de imundície. O chuveiro estava suspenso mesmo por cima da latrina, que lhe servia de escoadouro. Equilibrando-se na borda da latrina, o miúdo abriu a torneira e ficou-se no duche, encantado como uma criança a curtir uma chuvada.

'Despacha-te. A Senhora vai ralhar, se demorares muito tempo,' avisou o Paulino, assomando à porta. 'Quando estiveres pronto, vem ter comigo à cozinha.'

Assustado, o Sixpence fechou a torneiro sem ter chegado a ensaboar-se, limpou-se à capulana e vestiu uma camisa lavada que trouxera no saco de plástico. Depois atravessou o quintal o mais devagar que pôde, chutando as mangas caídas que encontrou pela frente.

No calor sufocante da cozinha, o velho Josué fritava peixe, inclinado sobre o fogão, e de vez em quando tinha de levar rapidamente as costas da mão à testa, a enxugar as gotas de suor que ameaçava pingar para a frigideira. O Paulino acabava de pôr a mesa, num vai vem entre a cozinha, a copa e a sala de jantar.

'Precisa de ajuda, senhor Josué?' perguntou a medo o Sixpence, em changana.

'Fala português, miúdo,' ordenou-lhe o velho. 'A Senhora não deixa falar landim dentro desta casa.'

Nessa noite, o jantar reuniu apenas a filha dos patrões e o marido. A Senhora estava recolhida com a enxaqueca, e a bebé já dormia. O Patrão andava por Sofala em serviço de campo, disse o Paulino.

A filha era uma mulher jovem, magra e de uma palidez azulada que tentava encobrir com rouge a mais. Chamava-se Dona Lúcia e era secretária num banco sul-africano, disse o Paulino.

O Sixpence tinha sido colocado de pé junto à porta, para aprender o serviço de mesa. Começaram pela sopa de legumes, depois o Paulino serviu peixe frito.

'Outra vez peixe frito!' comentou, enfadado, o marido.

'Francamente, Quim… ' bichanou-lhe a mulher, com uma olhada de soslaio na direcção do Sixpence.

A esposa chamava-lhe Quim, mas os criados deviam tratá-lo por Senhor Engenheiro. O Paulino disse-me que ele era desenhador nas Obras Públicas, obrigado a viver na sograria. Usava um bigodinho muito bem aparado, pintava o cabelo e dizia muitas piadas quando abusava do whisky, ou seja, quase todos os dias, segundo o Paulino.

O Sixpence estava espantado com tudo o que o Paulino sabia sobre os brancos. Quando lhe falou disso, dias depois, o moleque riu. 'Sei tudo. Os criados sabem tudo. Quando a senhora está menstruada, quando o patrão vomita a bebedeira, quando discutem, quando fodem, tudo! Estamos cá dentro e vemos tudo, ouvimos tudo. Nós sabemos tudo deles, e eles não sabem nada de nós.'

Quando acabaram de jantar, Dona Lúcia foi para o quarto dar biberão à menina, e o Senhor Engenheiro foi para a sala de visitas, ligou o rádio, e instalou-se a ler a Mecânica Popular. Recolhidos os patrões, comíamos nós. Enquanto a xima cozia, o velho Josué acabava de lavar a louça e arrumar a cozinha. Depois íamos comê-la nas dependências, porque a Senhora não gostava do cheiro da nossa comida.

Basicamente era xima e repolho, às vezes com peixe (des)congelado, com um refogado de tomate bem picante para disfarçar a penúria. Estava calor, comeram ao ar livre, debaixo do alpendre, o velho instalado na única cadeira, o Paulino sentado no degrau, e o Sixpence acocorado ao seu lado. O Josué foi o primeiro a servir-se e ficou com a maior parte do peixe. Seguiu-se o Paulino, e quando chegou a vez do puto já pouco havia na panela.

'Onde é a tua terra, miúdo?' perguntou o cozinheiro, em português. O velho falava sempre português e fingia não entender se abordado em changana.

O Sixpence contou a sua história.

'Se aprenderes bem o serviço, daqui a um ano já começas a receber ordenado,' concluiu o velho, moralizante.

'Vais ficar rico,' ironizou o Paulino.

'É melhor que nada,' contrapôs o cozinheiro. 'Lá na terra dele passava fome, aqui ao menos está a comer.'

'Grande coisa!'

'Vocês haviam de ver como era quando eu cheguei à cidade. Para andar na rua depois das vinte e uma, era preciso ter um bilhete do patrão a dizer que te autorizava a sair. Sem isso, se a polícia te apanhasse ias para a esquadra e levavas chambocada dos sipaios.'

O velho não teve comentários e retomou o monólogo.

'Se a senhora se chateava, escrevia um papel para o criado levar à Administração, pedindo para lhe darem porrada porque se portou mal.'

'E vocês?' inquiriu o Sixpence.

'Nós íamos, que remédio. Entregávamos o bilhete da senhora, levávamos com a palmatória e voltávamos para trabalhar, de mãos inchadas.'

Quando acabaram de jantar o velho Josué despediu-se vagamente e foi embora. Tinha casa própria para os lados da Avenida de Angola, e ia lá dormir.

'Vai lavar as panelas, Sixpence,' disse o Paulino.

Os tachos da comida dos criados não eram lavados na cozinha dos patrões, mas no tanque da roupa, no quintal, bem esfregados com areia e depois com sabão azul e branco. Habitualmente essa tarefa cabia ao Paulino, mas assim que o Sixpence foi admitido ao serviço passou a ser incumbido da tarefa. Foi a primeira de muitas transferidas para o miúdo. O mesmo sucedeu com as fraldas da bebé, até então lavadas a contra-gosto pelo cozinheiro-mainato, que passaram a ser trabalho para o Sixpence. E também a rega do jardim, ao fim da tarde, que até então cabia ao Paulino, na categoria de moleque-jardineiro. Basicamente, os outros atiravam para o miúdo todo o trabalho possível.

Lavadas as panelas, o Paulino e o Sixpence deixaram-se ficar pelo quintal, adiando o momento de se meterem no quarto, quente como um forno. O moleque tirou do bolso o berimbau, levou-o aos lábios e desatou a tocar. Era uma melodia muito simples, que eternamente recomeçava, um lamento vibrátil que pairava na noite, enchia o quintal e se elevava até aos ramos mais altos da mangueira. O Sixpence decidiu que, de ali a um ano, com o primeiro ordenado que recebesse compraria um berimbau.

Footnotes:

1  ‘Bus’, in Shangaan, the dominant language in Southern Mozambique.

2  A ‘cantina’ in Portuguese: a rural shop-cum-bar selling everything from wine to textiles, owned by Portuguese or Asian traders.

3  ‘Boy’ in Shangaan.

4  Literally ‘Land of the whites’ in Shangaan. It was used to refer to Lourenço Marques under colonial rule, which has been called Maputo since independence, in 1975.

5  Os Oliveiras was the largest intercity bus company in Southern Mozambique before independence.

6  Shangaan, the dominant language in Southern Mozambique.

7  ‘Heroes of Marracuene Street’ commemorated a decisive battle in which Portuguese troops defeated local Gaza forces; it was renamed ‘Resistance Street’ after independence.

8  Idiot in Shangaan.

9  A neighbourhood of lower to middle-class whites, in colonial times.

10  Sixpence was once used as a male name in Southern Mozambique, introduced by Mozambican miner returned from South Africa, now fallen out of use.

11  A Shangaan singer and composer, popular in Southern Mozambique since the 1960s.

12  A type of sarong, known as a kanga in Kenya and Tanzania.

13  ‘Landim’ was a generic term used by Portuguese settlers to refer to any African language.

14  The Brazilian version of the US magazine Popular Mechanic.

15  A porridge-style dish made from corn flour.

16  A leather whip originally made from rhino hide, a relative of the South African ‘sjambok’

17  A wooden paddle struck repeatedly against the palm of the hand, a common form of punishment used by the colonial authorities against ‘unruly’ Africans.

18 Jew’s harp

Esse post tem 0 comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *