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Está no Ar

tradução portuguesa de Sandra Tamele

Tell Me a Story, Somewhere in Portugal, Circa 1950's

Photo Title

  • Conte-me uma História

Localização

  • Em algum lugar de Portugal

Ano

  • 1950’s

‘Os meus olhos estão a sangrar?’ perguntou Ernesto ao doutor.

Apesar de a névoa turvar-lhe a visão, dava-lhe para notar que algo não batia certo no doutor: era demasiado novo. Aquele cabelo comprido à volta do rosto tinha um quê de pouco respeitável. Mas ele vestia a bata e crachá.

O doutor inclinou-se sobre o balcão. Ele disse, ‘Os seus olhos?’ num sussurro sério que podia ser de gozo, mas Ernesto tinha a sensação que não era.

‘Os meus olhos,’ Ernesto repetiu.

‘Não vejo sangue nenhum, mas a luz aqui é horrível. Como é que lê os rótulos do seu stock? Porque não pede uma lâmpada mais forte?’

O doutor tinha uma cadência na voz, como se estivesse a cantar. Tudo que Ernesto conseguiu dizer foi, ‘Ó.’

O doutor deu um passo atrás, notando um rolo de ligadura no chão. Ele girou o braço como um moinho de vento para se equilibrar. Ele disse, ‘Aconteceu alguma coisa aqui?’

‘Eu estava a empilhá-los, e o nevoeiro vermelho desceu, e eu deixei-os cair.’

Ernesto não conseguia acreditar que tinha dito em voz alta. O doutor só abanou a cabeça, como se todos tivessem uma névoa vermelha e disse, ‘A sério, porque não arranja uma lâmpada melhor?’

O nevoeiro dissipou-se. ‘Nunca pensei nisso,’ disse Ernesto. ‘Não acho que seja esse a razão…’

‘Claro que não. Vá lá, não seja rato!’

Ernesto se perguntou se algo no seu cérebro estava a misturar as palavras do doutor.

‘Agora passou,’ explicou ele. ‘A névoa. Mas às vezes fica uns dez minutos. E tem um…’

O nevoeiro vermelho trazia uma energia, como uma coluna de fumo, que subia da sua barriga para a sua garganta.

‘Um quê?’ estimulou o doutor. Ernesto contentou-se com ‘Às vezes faço coisas que não sei que estou a fazer’.

Ele deu por si num corredor na nova ala do hospital, onde nunca havia estado, nem ideia de como chegara lá. A mão estava cerrada num punho. A energia vermelha vibrava na sua palma. Por um momento ele pensou que tivesse acabado de dar um murro a alguém. Luís, o seu ex-chefe, por exemplo. Mas só tinha imaginado.

‘Nem sempre trabalhei num dispensário,’ contou ao doutor. ‘Eu costumava estar nas finanças.’

‘As coisas estavam melhor nessa altura?’

A coisa preferida de Ernesto era entregar os pacotes de vencimento em mãos ao pessoal do hospital todas as Sextas. Mas o seu ex-chefe jantava muitas vezes com o Presidente, e o filho precisava de emprego. Os trinta e cinco anos de serviço do Ernesto não contaram para nada.

O doutor era tão estranho, Ernesto sentia que podia dizer qualquer coisa. Então ele perguntou logo. ‘Estou a ficar maluco?’

Maria, a mulher do Ernesto era maluca. Ela não falava com Ernesto, ou com mais ninguém, tanto quanto ele sabia, há quase duas décadas. Ela só falava com o seu velho papagaio-cinzento africano, que ela chamava Otelo – nome estranho para um papagaio, até para um papagaio africano. Algumas vezes por ano, Maria tinha de ir a um hospital especial com muros altos e jacarandás que floriam roxos na primavera. Ela ficava uma ou duas semanas e eles diziam ao Ernesto para não visitar. Quando ela voltava para casa, ela só queria dormir; então Ernesto tinha saudades da Maria maluca que atirava tachos à parede.

O doutor disse, ‘Estamos todos a ficar malucos! Se viver neste país não te levar à loucura, seria uma loucura.’ Riu-se. Quando Ernesto não se riu, ele fez uma cara séria. ‘Tudo bem, em que ano estamos?’

‘1974.’ Agora estavam a gozar com Ernesto. Ele queria que este doutor impróprio lhe dissesse que artigos queria e que se fosse embora. Mas o doutor estava encostado ao balcão. Ninguém nunca se encostava ao balcão.

‘Correcto,’ disse o doutor. ‘Não vou perguntar quem é o Presidente, porque… quanto tempo resta, eh?’

‘O quê?’

‘Ares de mudança. Olha para Moçambique.’

Ernesto abanou a cabeça de um lado para o outro a tentar desalojar a estranheza.

 

Ele saiu do serviço para ir para casa, mas o seu cérebro estava a pregar as suas partidas. Deu por ele numa ruazinha sinuosa perto do castelo. Vislumbres do rio azul nos vãos entre os edifícios.

Ele entrou numa minúscula ferragem apinhada de caixas poeirentas. Ele pediu ao velho a lâmpada mais brilhante que ele vendia. Enquanto saía com a lâmpada no bolso, Ernesto riu-se. Estava tão maluco quanto o doutor de cabelo comprido, mas naquele momento não lhe importava. Era proibido por a própria lâmpada numa luz do hospital, mas ele não seria apanhado. Ninguém imaginaria que ele faria coisa tão ridícula.

O bom humor durou até ele chegar a casa. Maria estava de pé na varanda, o papagaio empoleirado no seu pulso. O jantar estava por fazer. Ela virou a cara quando Ernesto tentou persuadi-la ela a vir para dentro. Ela mantinha a cabeça perto do bico do papagaio e acenava, como se ele estivesse a falar com ela. Uma vez, quando Maria estava no hospital, Ernesto tinha soltado o papagaio na varanda e o enxotado com uma toalha até ele levantar voo. Ele pensara que aquela coisa estúpida tinha voado para a liberdade. Mas no dia a seguir à alta de Maria, ele chegou a casa do serviço e Otelo estava de volta, sentado na mão da Maria como se nunca se tivesse feito aos céus.

Ernesto reaqueceu um pouco da sopa de ontem. Sem ligá-la, ele sentou-se à frente da TV. Pela primeira vez nos seus trinta anos de casamento, ele tentou perceber se algo tinha feito Maria ficar como era. Mas sempre que uma possibilidade se sugeria, a mente dele deslizava para longe do pensamento.

Quando ele foi para o quarto, deu para notar pela respiração da Maria que ela não estava a dormir. Antes de apagar a luz, ele poisou a mão nas costas dela, disse ‘Está tudo bem.’ As palavras dele eram demasiado ruidosas para o quarto. Uma consciência de que nada estava bem desdobrou-se-lhe no peito. Maria estava muda, como sempre, mas ele sentiu-a tensa na surpresa.

 

O dia seguinte era uma quinta-feira, o dia que Ernesto sempre se encontrava com o irmão, Paulo, antes do serviço para um café e pastéis de nata. Ernesto decidiu abordar as palavras do doutor. Paulo era guarda no palácio presidencial. Se algo de estranho se estava a passar, ele saberia.

‘Ele disse que havia alguma coisa no ar…’ explicou Ernesto.

‘Pólen das árvores,’ disse Paulo. ‘Faz-me espirrar.’

Talvez também podia afectar os olhos e, o cérebro.

‘Moçambique, disse ele…’

‘Alguma coisa pode acontecer em Moçambique,’ disse Paulo. ‘Angola também. Os soldados que regressam de lá dizem…’. Estavam num café que frequentavam há décadas e, fora o dono, o local estava vazio. Mesmo assim, Paulo deixou a frase desvanecer.

‘Que tipo de coisa?’ sussurrou Ernesto.

Paulo abocanhou a palavra. ‘Revolução.’

Ernesto sussurrou, ‘Se houver uma revolução…’

Paulo estaria na linha da frente. Revoluções não trazem nada de bom.

‘Aqui não!’ disse Paulo. ‘Nas colónias. Consegues imaginar uma revolução em Portugal?’

Eles riram-se em silêncio.

 

Em vez de ir para o serviço, Ernesto caminhou até ao rio. As ruas estavam calmas – estavam sempre calmas assim numa quinta de manhã? Tinha passado algum tempo desde que tinham estado ali em baixo; o relógio da estação de comboios fora-se. Ele tentou recordar se tinha avariado. Em vez de comboios nos carris, ele pensou ter visto uma fila de tanques. Ele não queria olhar. Ele não queria estar no dispensário em vez das finanças, ele não queria que houvesse ares de mudança. Ele só queria caminhar.

Quando estava há passos da água, houve uma batida no seu ombro. Paulo estava parado atrás dele, ofegante.

Ele disse, ‘Vamos lá Ernesto. Não há nada para ti aqui em baixo. Vamos embora.’

Um som retumbante vinha dos edifícios, alguém estava a gritar num megafone. Depois mais barulhos, marulhar de palavras entre a multidão.

‘O que se passa?’ perguntou Ernesto.

‘Nada.’ Paulo limpou o suor da testa com a manga.

Era a revolução, a que eles disseram que não podia acontecer; ele viu pela cara do Paulo. Mas isso era ridículo.

Aí ele viu-o, poisado numa árvore. ‘É Otelo!’ lamentou.

Paulo olhou chocado. ‘Quem?’

‘O papagaio da Maria! Ali vai ele!’

‘O quê? Onde?’

‘Agora está no ar. Ele sabe de alguma coisa. Maria deve estar aqui, à procura dele.’ Ernesto virou-se na direcção dos barulhos. A mão do Paulo apertou-se no seu braço, puxando-o para trás.

‘Vamos pôr-te em casa.’ disse ele.

The red mist was back. It started at the edges of Ernesto’s vision, then became a haze covering everything. By the time it cleared, Ernesto was far away, jogging towards the square. The crowd’s energy surrounded him. It was like the buzz he’d felt inside his fist in the hospital corridor. His mouth was dry. He thought he saw the doctor up ahead, with others who had long hair and loose clothes. They were chanting about the end of fascism, clutching red things in their hands. Ernesto searched the sky and the trees for the parrot. Otelo was nowhere to be seen, but people were in the trees now, climbing the branches to get a better view, then staying there, as if a tree was a reasonable place for a human to sit.

Ernesto juntou-se à multidão enquanto esta saía da praça e seguia os tanques colina acima. Alguém lhe passou uma flor. Ele agarrou-a. A excitação tinha voltado ao seu punho, estava no seu corpo inteiro, mas não era assustadora: todas as outras pessoas também sentiam. Maria estava ali algures, com Otelo no pulso. Ele encontrou-a, ia dar-lhe este cravo vermelho.

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