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MÁ SINA

tradução portuguesa de José Sá

Windmill Appreciation Society, Somewhere in Portugal, circa 1930's

Photo Title

  • Sociedade de Apreciação de Moinho de Vento

Localização

  • Em algum lugar de Portugal

Ano

  • 1930's

Álvaro levou a mal que o mandassem ao laboratório. Era o tipo de recado que se dá a um servente, não a um repórter. Foi, sem arranjar discussão, mas sentiu que estava a ser diminuído.

Bateu à porta e entrou. O laboratório estava banhado de vermelho e os seus olhos levaram um instante ou dois a adaptar-se. O espaço cheirava bem, a produtos químicos, e estava surpreendentemente fresco. Mas parecia não estar lá ninguém.

“Alô?”, disse ele.

Uma fila de fotografias pendia, presa com molas, como bandeirinhas estendidas através da sala.

De súbito, luz branca inundou a divisão.

“Ei! O que estás aqui a fazer?”

Álvaro voltou-se e viu a silhueta do fotógrafo na porta de entrada.

“Desculpa. Eu bati à porta,” disse Álvaro. “O editor mandou-me vir buscar as fotos da regata.”

O fotógrafo olhou-o de alto a baixo, com cara de zangado ou de desconfiado. “Espera lá fora,” disse.

Álvaro saiu para o corredor e acendeu um cigarro. Conhecia o fotógrafo há anos, nada menos que seis, ou seja, desde que entrara para o jornal, e o fotógrafo já lá estava nessa altura. No passado, o homem fora sempre amigável.

O fotógrafo surgiu e entregou um envelope a Álvaro. “Aqui estão,” disse-lhe. Só tinha entreaberto a porta e fechava-a rapidamente atrás de si.

“Desculpa, espero não ter estragado nada”, disse Álvaro. “Deixar entrar luz, digo eu…”

O fotógrafo pareceu confuso. “Oh, não,” disse, abanando a cabeça. “Não olhaste para nada, pois não?”

“Para onde?”

“Para as fotografias.”

“Oh, não. Estava escuro,” disse Álvaro. “Tinha acabado de entrar quando tu apareceste.”

O fotógrafo anuiu com a cabeça, obviamente satisfeito. “Bem, da próxima vez esperas cá fora.” Voltou para a sua sala e Álvaro seguiu corredor fora.

Álvaro tinha olhado para as fotografias, é claro. Uma em particular chamara-lhe a atenção. Sete homens diante de um moinho. Tinha-os reconhecido a todos imediatamente, como faria qualquer pessoa da cidade. Estava lá Mário dos Santos Campos, o dono da fábrica; Leovigildo Duque, o patrão da construção civil; Aníbal Mendes, o fura-greves que virou agente da PVDE; Luís Alberto Machado, o presidente da câmara; José Carneiro, o chefe da polícia; D. Clótario de Lima, o senhor das terras; e António Vaz, o contrabandista. Formavam um grupo muito improvável. Álvaro tinha a certeza de que nunca tinham sido vistos juntos em público.

 

Caminhou até aos limites orientais da cidade e seguiu até às cabanas onde viviam os ciganos. Deu-se conta de que os esforços para se vestir à vontade tinham sido vãos. Ir sem gravata e arregaçar as mangas não lhe facilitara a integração. Sorria às pessoas, mas muitas vezes o seu cumprimento ficava sem resposta.

Havia uma oitava pessoa na fotografia. Escondida ao fundo, fora da visão dos sete homens: uma menina. Álvaro também a reconhecera. Tinha-a visto fora do mercado, com as ciganas que vendiam folhas de louro.

Havia uma ou duas crianças a brincar diante das cabanas, mas eram muito mais novas que a menina. Desceu para ir procurar antes na praia, mas cegou ao olhar diretamente o reflexo do sol na água. Fechou os olhos à espera que as manchas desvanecessem. Cheirava a mar, e ouvia vozes de criança. Abriu os olhos e viu um grupo de cinco ou seis crianças construindo alguma coisa na areia. Uma delas era a menina. Quando ela se levantou e desceu até à beira-mar, ele seguiu-a.

“Dá licença, menina?” disse Álvaro. “Posso falar contigo um bocadinho?”

Ela ergueu os olhos para ele, de soslaio por causa do sol, mas voltou ao que estava a fazer – lavar uma concha, ao que parecia.

“Não é preciso teres medo, sou do jornal. Só te quero fazer uma pergunta, e mais nada. Toma, eu trouxe figos.”

Álvaro comprara figos secos no caminho, precisamente com essa finalidade. Estendeu-lhe o cartuxo. Ela hesitou, depois aceitou e meteu dois na boca ao mesmo tempo. Pareciam bons, e Álvaro arrependeu-se de não ter ficado com um para si.

“Estou à procura de um moinho,” disse, “um moinho onde às vezes vais brincar, e onde alguns homens também vão.”

Os olhos da menina continuavam postos nos figos.

“Sabes de que moinho estou a falar?”, arriscou Álvaro, mas ela não disse nada, continuou simplesmente a mastigar.

“Conheces António Vaz,” perguntou, um pouco mais insistente agora, “o… pescador?”

Ela acenou que sim.

“Pois ele esteve lá, nesse moinho, com outros homens. E tu também lá estavas. Sabes de que moinho estou a falar?”

Ela voltou a acenar.

“Levas-me lá?”

Ela não reagiu. Meteu mais figos na boca, três de uma vez, com os talos e tudo.

“Isso valia outro cartuxo de figos,” disse ele. “Talvez até um gelado.”

A menina levantou os olhos para ele. “Hoje não,” disse ela. “Amanhã.

 

Seis semanas antes Álvaro recebera a visita de Nazaré, uma rapariga com quem tinha andado na escola. O pai dela, Eurico, saíra à pesca uma noite, e vira algo que talvez fosse importante. Ao voltar para terra, avistara outro barco em movimento junto aos recifes. A princípio entrou em pânico, porque tinha ido pescar num estuário que pertencia a D. Clótario e já antes o tinham repreendido por causa da pesca furtiva. Mas a noite estava nublada e a lua brilhava de tal modo que o outro barco era iluminado, enquanto o seu permanecia na sombra. Relaxou, até perceber o que estava a ver. Havia três homens no barco: à proa ia sentado António Vaz, o contrabandista, que remava; ao leme, fumando, ia Aníbal Mendes, o agente da PVDE; e entre os dois sentava-se Jaime Dias, o anarquista, suposto estar no Tarrafal.

Álvaro agradecera a Nazaré e prometera-lhe que ia averiguar. Os jornalistas tinham de ser cuidadosos com essas coisas, mas achou que não havia mal em pedir para ver a lista de prisioneiros embarcados para a colónia penal. Submetera devidamente um pedido, mas o editor bloqueara-o; não iam correr o risco de irritar a PVDE com uma coisa que um velho dizia ter visto no escuro.

Já era de esperar, mas isso tinha incomodado Álvaro na mesma, porque o editor sabia tão bem como ele que Jaime não era anarquista. Era o namorado de infância de Natália, a rapariga mais bonita da cidade, cobiçada para esposa por Leovigildo Duque, patrão da construção civil, trinta e cinco anos mais velho que ela. Leovigildo denunciara Jaime como anarquista, e o rapaz fora preso. Como Natália continuasse a desdenhar os avanços de Leovigildo, Jaime fora mandado para o Tarrafal. Ou assim se dizia.

Álvaro resignara-se a abandonar o assunto quando Nazaré o visitou pela segunda vez. Eurico tinha sido brutalmente espancado. Ele não quis contar o que se passara, mas Nazaré tinha ido falar com José Carneiro, o chefe da polícia, e ele disse-lhe que Eurico era uma anarcossindicalista que tivera o que merecera.

Era um disparate revoltante. Jaime não era anarquista, mas pelo menos pertencera ao sindicato e protestara quando foi encerrado. Eurico nunca estivera num sindicato e não era militante de nada. Álvaro voltara a falar com o editor, mas este voltara a rejeitar a matéria. Um suspeito de subversão fora espancado; mal se podia chamar a isso uma notícia.

 

Era um disparate revoltante. Jaime não era anarquista, mas pelo menos pertencera ao sindicato e protestara quando foi encerrado. Eurico nunca estivera num sindicato e não era militante de nada. Álvaro voltara a falar com o editor, mas este voltara a rejeitar a matéria. Um suspeito de subversão fora espancado; mal se podia chamar a isso uma notícia.

A princípio Álvaro tentara meter conversa com a menina, perguntando-lhe sobre a cena da foto, e depois sobre a escola, irmãos e irmãs, e coisas assim. Ela, ou respondera com uma palavra ou não respondera nada. Era evidente que ela o achava intrigante, aquele homem que lhe trouxe figos. Mas parecia saber para onde iam, e isso era o principal.

Álvaro não estava certo do que esperava encontrar no moinho. Sinais de um esconderijo, talvez. Eurico recusara-se a falar da sua provação, mas Álvaro ouvira outros relatos de espancamentos. Pessoas falavam de serem colocadas no meio de um círculo de agressores, de levarem empurrões e encontrões, e depois pontapés e murros à medida que o círculo de cerrava. O interior de um moinho formaria um círculo ideal.

Talvez encontrasse provas de espancamentos, então, ou talvez de Jaime Dias ali ter estado detido. Talvez até encontrasse o próprio Jaime!

Isso talvez fosse demais. Acima de tudo queria mostrar a Nazaré que tentara. Não queria que ela pensasse que se assustara demais, ou que não se importava.

O carreiro desembocou numa praia, que Álvaro não reconheceu. Seguiram pelo areal e contornaram um penhasco. Ocorreu-lhe que não conseguiriam fazê-lo com maré alta. Seria por isso que a menina sugerira hoje em vez de ontem? Saberes ciganos, talvez.

Por trás do promontório foram dar a outro carreiro e começaram a subir. Nas partes mais íngremes tinham talhado degraus na colina. O sol abatia-se com força na cabeça de Álvaro, que tinha a garganta seca. Começou a desejar que se tivessem encontrado mais para o fim do dia. E de repente viu-o. O carreiro emergia abruptamente num alto e lá estava ele, erguendo-se com orgulho no promontório: o moinho da fotografia.

Estava surpreendido e entusiasmado por o terem encontrado, mas também sentia sinais de apreensão. Se realmente era um covil de malfeitores, que fazia ele ali? Estava zangado consigo mesmo por não ter aproveitado a caminhada para inventar uma boa justificação

Mas a menina não parecia preocupada. Continuou em frente, e Álvaro seguiu-a.

Dentro do moinho estava escuro e a princípio não conseguia ver nada. Depois os olhos habituaram-se e ele notou que afinal de contas não estava assim tão escuro, era mais uma questão de contraste com a claridade exterior. A sua visão focou-se. Não estavam sós.

“Obrigado, Madalena,”, disse Luís Alberto Machado, o presidente da câmara, à intenção da ciganita. Ela dirigiu-se a Mário dos Santos Campos, o dono da fábrica, que lhe pôs um escudo na mão. Meteu a moeda ao bolso e saiu.

Álvaro olhou em volta. Além do edil e do industrial, lá estavam também Leovigildo Duque, o empresário da construção civil; Aníbal Mendes, o agente da PVDE; José Carneiro, o chefe da polícia; D. Clótario, o latifundiário; e António Vaz, o contrabandista.

A fotografia dos homens, da menina e do moinho reluziu à sua frente. Outro homem surgiu das sombras: o seu editor.

“Eu preveni-te do que não se pode considerar notícia, Álvaro.”

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