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Pescar Fantasmas de Papel

Helena, Hat and Sneakers - Praia da Rocha, Algarve, 1943

Nos anos 90 passei alguns anos como peixeira na Java Ocidental, Indonésia. O meu marido na altura, Samino, exercia a sua arte numa piroga de mar. Pescar no Mar de Java era como um jogo com o oceano, apostando na perícia, sorte e fidelidade à deusa marítima local. O acaso era a nossa droga. Batia-nos de uma forma crua e fermente enquanto perseguíamos as nossas enormes fantasias em forma de peixe, como viciados caçando o dragão.

Por o nosso sustento depender dos despojos tornava a aposta ainda mais arriscada, fazendo todos os diferentes aspetos da pesca pulsarem com uma urgência. O clima ficava mais portentoso. O oceano brilhava mais sedutoramente. A areia, o céu e as ferramentas do trabalho — as redes feitas à mão, o barco escavado de um único tronco, a lanterna para seduzir as lulas — todos floresciam com a fragrância do destino. Quaisquer que fossem as capturas do dia (e houve muitos dias carrancudos sem peixe), a aposta do dia seguinte seria renovada, prenha de potencial.

A caça de fotos pouco usuais lança sobre mim um feitiço semelhante. Tenho um interesse especial em imagens antigas a preto-e-branco de pessoas comuns tratando do seu dia-a-dia, fotos tiradas muito antes de eu ter nascido. Coleciono estas pérolas há mais de quatro décadas e, embora os lugares onde as procuro não sejam abençoados com os óbvios encantos do mar, nem eu dependa de fotos para o meu jantar como antes dependia do peixe, a apanha ainda me excita.

A caça a fotografias fortuitas exige que esteja bem descansada, abastecida com cafeína e munida de concentração, paciência e intuição. Passo horas sem fim a inalar pó em corredores de lojas de antiguidades, ou a remexer em caixas de cartão em feiras de velharias, o suor escorrendo-me pelas costas.  Vasculho caixotes do lixo fedorentos e por vezes esgueiro-me em casas abandonadas, à pesca de uma imagem que me atordoe.

Examino cada foto, notando a geometria da composição e da luz, a sedução entre o bonito e o feio. Farejo um perfume de mistério, um aroma de estranheza, um odor de surpresa. Algumas imagens parecem como que iluminadas por dentro; outras estão manchadas pelo submundo, como Perséfone regressando envolta no seu véu negro. É o instantâneo raro onde todos os elementos se misturam num fermentar alquímico de uma potente aguardente visual.

Reconheço-o instantaneamente. Como no momento em que sentia o puxar súbito na linha de pesca, apanhar a foto certa pode pôr o meu coração a palpitar. Certas imagens têm esse poder sobre mim. Não vou tentar descrever nenhuma delas — o seu feitiço não pode ser invocado com palavras. Mas adoro lançar o meu olhar nestas relíquias apanhadas ao acaso e estou segura que sempre irei. Ultimamente, apanho-me atraída por elas com mais frequência — quase compulsivamente ­—, como se me oferecessem uma saída, uma passagem para um outro mundo.

“Todas as fotografias são memento mori”, diz Susan Sontag na sua coleção de ensaios de 1977, On Photography. Sontag refere-se simultaneamente ao significado latino de memento mori, “Lembrem-se que vão morrer” e à prática vitoriana de fotografar os falecidos em poses realistas —retratos da morte concebidos como lembranças pungentes para os que ficaram para trás. Sontag sugere que todas as fotografias — mesmo as dos vivos — são lembranças de uma rede a que ninguém se consegue esquivar.

Fitando a face de uma pessoa — mesmo que simplesmente impressa num papel fotográfico — é um ato íntimo. Muitas horas passo com cada um dos meus achados. Dou a cada o seu nome. Procuro pistas — um olhar, uma sobrancelha levantada, uma boca que se arqueia — e monto histórias. Com o tempo, estes estranhos tornam-se família. É como se, por os estudar, os salpicasse com um pó mágico e os estremecesse de volta à existência, tão destemidos e vivos como há uns 90 anos atrás, convidando-me para um copinho de tinto. Dou um golinho e clique! encontro-me num lugar estranhamente familiar.

Num mundo onde temos as mãos na terra. Onde nos cumprimentamos com um aceno ao dia em si. Onde comer ao fresco é a norma. Onde pescamos e pastoreamos e lavramos e fermentamos, ou conhecemos bem quem o faz. Onde oferecemos livremente o nosso tempo e a nossa atenção. Onde lemos e debatemos sobre livros, tocamos música e dançamos, namoramos e celebramos a terra. Onde os tempos mais difíceis exigem uma tripla estratégia artesanal de criatividade, atrevimento e cooperação, e enfrentamos os desafios envolvidos em dignidade e empunhando graça.

Os meus instantâneos têm a mania de me apanhar desprevenida, enrolando-me num mar de nostalgia. São uns trapaceiros — verdadeiros, mas algo vigaristas. Transbordam de normalidade enquanto disfarçam a bagunça, atenuando as traições, polindo os egos mais brilhantes. Mas não faz mal. No fundo, não é das fotos que se trata. Elas são apenas pedacitos de papel. É o ato de as olhar que faz girar a roda, arrebatando o super-prémio de humanidade compartilhada e acendendo uma lanterna no meu coração.

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