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Era Uma Vez Um Rapaz

Nuno and Papa in the Castle Garden, Somewhere in Portugal, circa 1930's

Há uns seis meses atrás encontrámos um pequeno álbum verde de fotografias cheio de instantâneos de um português anónimo, com a sua vida documentada desde o seu nascimento em meados dos anos 30 até se tornar adulto nos anos 40. Chamámos-lhe «Nuno» e, depois de muitas horas examinado, digitalizando e restaurando as suas fotos, comecei a sentir como se o conhecesse. Tendo eu criado três raparigas, apanhei-me frequentemente pensar sobre garotos. Pedi a alguns artistas e escritores que são pais de rapazes que dissessem de sua justiça. Aqui está o que contaram. Para ver todo o álbum do Nuno, vá aqui..
— Fantasmas de Papel

 

Óla Nuno, Somewhere in Portugal, circa 1930'sQuantos de vocês notaram o sorriso apatetado de um novo pai? O meu filho — o meu primogénito — foi-me apresentado ainda «ligado» à sua mãe. Ali nos meus braços estava o futuro e o sorriso brilhante e apatetado aconteceu instantaneamente. A minha mulher ficou bem segura nas mãos das parteiras enquanto eu peguei no meu futuro amigo de longa data, com quem iria compartilhar as suas aventuras, sonhos e medos, repousar nos seus sucessos e excitação de viver. Aqui estava alguém quem eu desejava que pudesse saborear as partes positivas do seu ser e não ser demasiado influenciado pelas desilusões e rejeições potenciais que a vida traz. Vesti este sorriso apatetado de expectação com ambos os meus recém-nascidos e sempre o usarei com orgulho. É esperança pura e autêntica.
— Barry Chattington

 

Glow-worm, Lisbon, circa 1930's

Uma das minhas mais preciosas possessões é um objeto sagrado. É um recibo enrolado num tubo de papel brilhante. Nele, uma imagem granulosa a preto e branco, prova da existência da minha criança por nascer. Tinha resistido à ideia de ter uma criança pelos meus trinta adentro, com o objetivo de o evitar completamente. Mas nesse dia, depois de ouvir pela primeira vez aquele borboletear aquoso da batida do coração, esse evitar foi substituído por uma intensa antecipação. Desde aí, no final de cada dia, passei a deitar-me na cama ao lado do estomago distendido da minha esposa e a falar suavemente para o pequenote no útero, escutando atentamente algum sinal de que me ouvia, ou eu a ele.

Numa madrugada de agosto os médicos entregaram-me a minha única criança, o meu filho Vince. A lembrança do seu nascimento ainda me trás lágrimas aos olhos enquanto escrevo. Fomos inseparáveis desde esse dia. Estávamos juntos cada minuto em que eu não estava a trabalhar. Quando Vince tinha quase um ano de idade, a minha esposa e eu decidimos mudar-nos para a região este do país. Eu fui primeiro para encontrar trabalho e um lar para a nossa jovem família. Pensei no Vince em cada minuto que estive fora. À noite, quando ligava para casa, a sua mãe punha o telefone no ouvido dele e, enquanto eu falava, ela descrevia-me cada expressão sua, cada pormenor desenhado na minha mente. Essa semana fora foi a mais longa da minha vida.

Ao regressar, lembro-me de estacionar em frente da casa. Entrei e chamei pelo Vince. Primeiro ouvi-o a caminhar em direção à minha voz; depois, espreitou na esquina. Nunca vou esquecer os olhos enormes de um azul marmóreo. A sua carinha redonda, a barrinha por cima da fralda enquanto tropeçava para mim, os seus braços gordinhos levantando-se para o teto em alívio e excitação. Abraçámo-nos, aconchegámo-nos, o seu cheirinho a bebé assegurando-me que estava em casa.
—David McConkieNuno Hits the Road, Lisbon, circa 1930's

Quando os meus rapazes eram pequenos, eu levava-os para o vasto mundo num carrinho ou, mais tarde, nos ombros ou na minha bicicleta. Sempre a olhar para a frente. Na minha bolha, perto do meu coração, mas sempre virados para a frente. Quando o levava na minha bicicleta, no seu banco montado no guiador, Ben dizia: “Tenta evitar os solavancos, papá.” E eu tentava. E assim fazia. Era a minha missão, mantê-los junto a mim, fazê-los sentir que eu estava com eles, levá-los para o mundo, dar nome ao que passava à nossa frente e, acima de tudo, tentar evitar os solavancos.
—Loring Vogel

 

Two Boys in Fabulous Outfits

Numa primavera quando os meus dois filhos eram pequenos, comprámos-lhes um par de gansos bebés, um macho e uma fêmea. Cresceram num instante. Linden, o meu filho mais novo, gostava de brincar com a sua gansa e eu adorava vê-lo enquanto corria e a ave voava graciosamente a seu lado. Até adormeciam os dois juntos no carrinho-de-mão enquanto eu jardinava. Mas o ganso macho tornou-se num terror. Era solícito e cortês comigo, mas atacava qualquer macho que encontrava, até os rapazes. Nessa altura vivíamos num atrelado nas montanhas e tínhamos que estar ao ar livre para quase tudo. Esse ganso tinha uma bicada forte. Um dia, Linden e um amigo decidiram vingar-se e construir uma armadilha para ele. Trabalharam duramente, escavando um buraco, e depois esperaram que ele caísse lá dentro. Mas o espertalhão do ganso deu por ela e eventualmente tivemos que o dar a alguém, onde foi dominar o bando de outra família. O Linden escreveu uma história sobre ele chamada “O Terrível Ganso Terrorista”.
— Erle Reed

 

Friend, Boat, Sea, Sand, Somewhere in Portugal, circa 1930'sNuma manhã de sábado em agosto, enfiei os meus dois filhos Jasper e Jonah na nossa carrinha para irmos ao Y, para a “sopa de necessidades especiais”, o nome que dei ao programa de Adaptação Aquática em que o meu filho mais velho estava inscrito. Com dez anos, o Jasper estava bem seguro, sentado na sua cadeira de rodas, esperando excitado que chegássemos. O seu nascimento tinha sido traumático, deixando-o parcialmente paralisado e com uma paralisia cerebral. Depois de sete anos de um processo legal por negligência médica, tinha ganho uma carrinha para o transportar a ele e à sua cadeira de rodas; uma geringonça de pendurar que o permitia pular livremente por toda a casa; e a possibilidade de frequentar o programa de natação no YMCA. Eu e o seu irmão Jonah, com oito anos, fomos encorajados em o acompanhar. E assim estes três gajos estavam contentes a boiar na água a 36 C juntamente com outras famílias de crianças com deficiência.

I am the Sea, Somewhere in Portugal, circa 1930'sO Jasper era a estrela do YMCA, o seu cabelo encaracolado e beleza sorridente a atrair as mamãs de outros miúdos com dificuldades motoras e as raparigas universitárias que voluntariavam lá. O Jonah não se importava de ser o ajudante do seu irmão mais velho. Os dois rapazes tinham uma ligação forte e, enquanto esperávamos na carrinha que a sua mamã trouxesse o almoço, eu admirei a sua cumplicidade e senti uma certa invejaEu amava a minha irmã mais nova Gina, mas sempre me interroguei como seria ter irmãos. Virei-me para os rapazes no banco de trás:

— Oh, pessoal, — sussurrei — eu sei que sou o vosso pai, mas o que acham se ficássemos irmãos?

O Jasper sorriu e o Jonah disse “Claro!” e cada um pôs um punho no colo ossudo do Jasper e cantámos “Irmãos, irmãos, irmãos, para toda a vida!” Passei a fazer parte oficialmente de uma fraternidade. Pareceu-me bom e real.

Jasper foi o meu primeiro filho. Quando me tornei pai, tornei-me também num guardião, enfermeiro e ávido investigador dos avanços médicos que poderiam ajudar a minha criança. Tudo isto era inesperado e fora do normal, mas nunca o pus em questão. Tornar-me num irmão dos meus filhos foi simplesmente outro papel que podia tomar. Com Jasper, o inesperado era a norma.

Mais tarde nesse ano o Jasper morreu durante o sono com um ataque epiléptico e a nossa irmandade foi obliterada para sempre. Jonah e eu voltámos aos nossos papeis de pai e filho e assumimos uma vida de normalidade que não existia quando o Jasper ainda era vivo. Embora eu seja um feliz pai de um rapaz pré-pubescente (e por vezes muito pateta) e de três raparigas que celebram a sua irmandade, na nossa memória o género do Jasper perece ter desaparecido. Mas não importa. Era o Jasper que permitia que qualquer coisa pudesse acontecer — inversão de papeis, vidas de cabeça para baixo ou viradas ao avesso, toda essa magia pré-autorizada, bem-vinda e verdadeira.
— Jon Gonzales

 

The Joy of Wheels, Lisbon, circa 1930's

Olhando para trás, para a sua infância, nunca me passou pela cabeça que a minha filha Ingrid pudesse ser transsexual, um termo que ela agora escolheu para a descrever. Nessa altura inconscientemente via-a como um rapaz, como era ditado pela sua bilogia. Lembro-me de uma placa que uns amigos tinham pendurada na cozinha, qualquer coisa sobre educar rapazes e raparigas da mesma maneira. Era um conceito que não tinha considerado. Primeiro era tipo, duh, claro que os vou educar da mesma maneira. Agora percebo quão importante realmente é.

Quando a Ingrid brincava com o Buzz Lightyear ou colecionava bonecas Hello Kitty e Beanie Babies, não os considerei como brinquedos específicos de um género. Por vezes ela era forçada a se defender quando os miúdos do Clube de Rapazes e Raparigas o chamavam de rapariga. Uma vez ela colou duas notas Post-it ao peito, uma que dizia «Não perguntes» e outra «Rapaz». Honestamente, na altura nunca me interroguei se ela era ou rapaz ou não. Não tinha importância para mim.st said “Don’t ask” and another that said “Boy.” Honestly, I never questioned whether she was a boy or not. It didn’t matter to me.

Biker Gang, Lisbon, circa 1930'sAos nove anos o corpo da Ingrid começou a traí-la. A testosterona tomou o controlo. Se tivesse sabido na altura que ela era uma rapariga. Se tivéssemos sabido da existência de inibidores hormonais. No princípio ela não percebeu o que lhe estava a acontecer, nem onde se encontrava no espetro do género, ou nem que esse espetro existia. Nunca teria imaginado que ela iria cair em depressões profundas e escuras, uma consequência do que agora percebo ser dismorfia corporal. Estava simplesmente a tentar educar uma pessoa. Decidi pelo ensino domiciliar e achei que era a melhor escolha para nós, mas houve algumas coisas que não lhe sabia ensinar na altura.

Embora a Ingrid não estivesse preparada para algumas das crueldades da vida, ela é uma mulher altamente inteligente e capaz, com uma multitude de talentos, uma mulher que navega a sua vida com um forte sentido de quem é. Este autoconhecimento não tem nada a ver com as suas partes biológicas. E de alguma forma ela ainda é o meu menino, pelo menos nesse pedaço do passado. Isso não consigo apagar.
— Cassandra Houghton

 

 

School Days, Lisbon, circa 1930'sVenhode uma família de artistas masculinos. O meu pai era um artista visual, eu sou um artista visual, o meu filho Sasha é um músico profissional e o meu neto Joaquin, com cinco anos, já começa a mostrar traços do seu espírito criativo. Sempre senti que o meu papel como pai era ser uma ponte entre a vida doméstica e o grande mundo. Valores tinham que ser aprendidos por exemplo, como honrar os compromissos, estar preparado, chegar a horas, escutar os outros com ouvidos abertos e com um coração e uma mente abertas. Como sou um nativo do Bronx em Nova Iorque, também costumava usar uns ditados como «Não faço mal, mas não aceito merdas», um adágio que eu próprio uso de vez em quando.

Em criança, o Sasha era ambidestro. Nunca pensei muito nisso, mas os seus professores na escola estavam muito preocupados, insistindo que ele iria desenvolver problemas emocionais por não conseguir escolher entre a sua mão esquerda ou direita. Estavam encasmurrados em o fazer destro e usavam truques como obrigá-lo a segurar um cristal na mão esquerda (isto era na Califórnia) enquanto ele escrevia ou desenhava com a direita.

Eu não tinha paciência para estes disparates pedagógicos antiquados. Tive muitas discussões com os seus professores, culminando numa confrontação cara-a-cara com a sua professora do segundo ano e com o meu aviso no estilo de Bronx de que ela nunca mais deveria interferir coma sua ambidestria inata. Devo tê-la convencido, porque o assunto ficou arrumado. Sasha tornou-se num grande pianista, com força e destria fora do habitual em ambas as mãos. E num homem emocionalmente equilibrado e pai do seu próprio rapaz.
—Claude Smith

 

Attitude, Somewhere in Portugal, circa 1930's

Quando o meu filho Tyjal tinha nove anos, teve uma infeção estafilocócica resistente e passou vários dias no hospital. Os médicos tentaram vários antibióticos e alguns pareciam funcionar temporariamente, mas depois não resultavam. Tyjal rapidamente enfraqueceu, ficando letárgico e febril. Eu nem sequer conseguia que abrisse a boca para que a enfermeira pudesse tirar-lhe a temperatura. A cabeça amarela da pústula na parte interior da coxa continuava a crescer. As suas veias colapsaram.

Por volta do décimo dia, ao entrar no quarto do Tyjal no hospital para substituir a sua mãe, vi o pessoal de enfermagem a mexerem-se para vestir equipamento de protecção completo e máscaras, como se houvesse alguma doença terrível e contagiosa. Senti uma onda de medo à medida que a minha realidade mudava. Pensei que Tyjal estava perdido. Evitava que o meu pânico me esmagasse, dizendo a mim próprio que precisava de tomar conta da minha filhinha, Aja. Isto também me ajudou-me a manter-me recomposto para ajudar o meu filho.

Ele melhorou.

Fomos ao parque no primeiro dia em que Tyjal pôde ver os seus amigos, e arrastou a sua perna ainda cicatrizante em direcção ao grupo de rapazes. Nunca o vi tão entusiasmado.
— Art Moura

 

How Did He Do That? Somewhere in Portugal, circa 1930's

O meu filho Enfys era ousado e destemido na infância, como se vivesse para sempre. Parte de mim - especialmente agora que ele é um jovem adulto e interessado nos deuses gregos e nórdicos - sempre acreditou que ele era imortal. Subia árvores e escadas, corria com alegria e determinação pelas calçadas e pelos campos e prados. Sempre curioso, Enfys desmontava coisas, enchia os bolsos cheio de pedras no parque e levava-as para casa para as examinar sob uma lanterna no seu quarto. Criou obras de arte arrojadas. Pegou em microfones e cantou com toda a sua alma nas bandas de amigos em festas enquanto ainda era tão pequeno que o podia carregar na minha anca direita. Ele poderia saltar mais alto do que qualquer criança que alguma vez conheci.

Enquanto os meus amigos com rapazes se queixavam frequentemente dos seus filhos rebeldes, suspirando e dizendo que eu nunca compreenderia como era difícil acompanhá-los, tudo o que eles descreviam era exatamente o que eu experienciava com o meu próprio filho. De facto, a Enfys foi designada mulher à nascença. Mas nunca fui pessoa de encaixotar as crianças nas expectativas de como deveriam comportar-se com base no que a sociedade exige. Quando ele saiu do armário na adolescência e me disse que não era uma rapariga mas sim um rapaz, sorri, ri e disse: "Claro que és". Rapaz, rapariga, não binário, seja o que for, gosto de acreditar que a minha resposta teria sido a mesma, não importa o quê.
—Dani Burlison

 

Nuno and Uncle Zé messing around

Talvez fosse porque onde vivíamos era uma zona central e situava-se a uma distância que se podia percorrer a pé da escola secundária deles, pois a minha casa ficava onde os rapazes tendiam a reunir-se à medida que os seus membros e bigodes e hormonas cresciam. Foi durante a era "Jackass", um programa de televisão onde homens adultos se comportavam como idiotas, muito popular entre os rapazes e muitos homens também. Cada episódio apresentava brincadeiras perigosas envolvendo explosivos ou saltos por abismos ou agindo como parvalhões em locais públicos. O meu filho e os seus amigos escolheram para si próprios a tarefa de imitar e aperfeiçoar as possíveis brincadeiras. Uma das favoritas era frequentar o hipódromo universitário durante as horas pós-escolares, quando a maioria das mulheres mais velhas praticavam caminhadas de corrida - aquele tipo engraçado de passo rápido em que se bombeia os cotovelos para cima e para baixo e se movimenta as ancas de um lado para o outro sem entrar numa corrida propriamente dita.

Tiny Nuno, Big ZéeTalvez fosse porque onde vivíamos era uma zona central e situava-se a uma distância que se podia percorrer a pé da escola secundária deles, pois a minha casa ficava onde os rapazes tendiam a reunir-se à medida que os seus membros e bigodes e hormonas cresciam. Foi durante a era "Jackass", um programa de televisão onde homens adultos se comportavam como idiotas, muito popular entre os rapazes e muitos homens também. Cada episódio apresentava brincadeiras perigosas envolvendo explosivos ou saltos por abismos ou agindo como parvalhões em locais públicos. O meu filho e os seus amigos escolheram para si próprios a tarefa de imitar e aperfeiçoar as possíveis brincadeiras. Uma das favoritas era frequentar o hipódromo universitário durante as horas pós-escolares, quando a maioria das mulheres mais velhas praticavam caminhadas de corrida - aquele tipo engraçado de passo rápido em que se bombeia os cotovelos para cima e para baixo e se movimenta as ancas de um lado para o outro sem entrar numa corrida propriamente dita. Os rapazes ficaram às margens e depois saltaram para a pista a passos largos ao lado das mulheres, à medida que davam a volta à curva, muito para a consternação das senhoras (mas às vezes riem-se).

No dia de abertura de "Jackass The Movie", fui a mãe encarregada de deixar os rapazes no teatro e depois voltei para casa só para receber um telefonema desesperado do meu filho de que não poderiam ser admitidos sem um adulto presente que ficaria para todo o espectáculo. Fui obrigado a assistir a todo o espectáculo idiota na fila de trás enquanto os rapazes se sentaram todos à frente, não querendo ser visto comigo. As proezas que essa matiné inspirou resultaram numa tarde de tíbias arranhadas, joelhos machucados, uma ferida aberta, e grande cinematografia. Felizmente, ninguém ficou gravemente ferido na realização desses vídeos juvenis e hoje o meu filho está empregado lucrativamente por Apple como artista de animação gráfica.
— Marianne Rogoff

 

On the Edge of Autonomy

O meu filho de 34 anos acabou de sair de casa para fazer uma corrida rápida no parque, e mais uma vez, maravilho-me com a beleza dele, cada linha dura esculpida da sua forma masculina. Nunca deixo de me admirar por ter dado à luz o que considero ser o espécime perfeito da masculinidade.

No entanto, ele não está isento de problemas. Por vezes pergunto-me se o facto de ter nascido de uma mãe solteira o afectou nas primeiras fases de gestação. Eu sabia que ele era diferente desde o início. O seu próprio nascimento foi um milagre, pois eu tinha recebido quatro testes de gravidez negativos. Até me foram dadas hormonas para induzir o período. Entretanto, estava a sentir os primeiros sintomas de gravidez. As hormonas falharam. Penso que aquela pequena alma queria muito nascer.

Desenvolvemos de imediato uma ligação particularmente forte. Apercebi-me disso quando as enfermeiras o trouxeram para mim no hospital, uivando e gritando mais alto do que qualquer outro bebé no berçário. Acalmou-se no momento em que foi colocado nos meus braços. Como é uma criança Leo, presumo que este foi o seu primeiro rugido de leão, fazendo-se ouvir. Outro sinal precoce e um pouco sinistro da nossa intensa ligação foi a sua capacidade de ler a minha mente. Enquanto aprendia a falar, acabava as minhas frases ou fornecia respostas a perguntas não ditas que estavam a remoer na minha cabeça. Atónita, documentei estas ocorrências vezes sem fim. Isto continuou durante os seus primeiros anos de infância, mas ele acabou por deixar de o fazer, o que me entristeceu. Mas sempre me deixou com a certeza de que as pessoas são capazes de comunicar telepaticamente, uma capacidade que perdemos ou que deixamos de usar com o passar do tempo. Também parecia ter nascido com uma linguagem já feita, atribuindo substantivos e adjetivos não-ingleses às coisas do dia-a-dia. Costumava olhar para ele e perguntar a mim mesma: De que planeta é que vieste?

Com o passar dos anos, compreendi que a origem destas peculiaridades estava no facto de o meu filho estar no espectro do autismo. Este não era um termo familiar nos anos 80. Depois de atingir a puberdade, teve dificuldades com interações sociais e estímulos sensoriais, comportamento que parecia enquadrar-se na descrição da Síndrome de Asperger. Mudou a sua dieta, o que ajudou muito. Apesar dos seus desafios, em muitos aspectos é um adulto de grande desempenho, se bem que provavelmente viverá sempre comigo.

Uma das grandes alegrias de viver com o meu filho é o quanto é infalivelmente educado e formal, o quão grande é o seu coração. Ele nunca deixa de me agradecer por tarefas mais mundanas, o que sempre me choca. Com certeza que nunca agradeci aos meus pais por nada, e não conheço ninguém que tenha feito isto no dia-a-dia. Posso tê-lo ensinado a atar os sapatos, andar de bicicleta e conduzir um carro, mas em troca foi ele que me deu o verdadeiro dom da vida e me ensinou tudo o que sei sobre como amar outro ser humano.
— Marie Bottini

Cuteness Alert! Lisbon, circa 1930's

 

 

 

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